O Peixe

Começou em 21 de fevereiro de 1926, uma data que nunca vou esquecer. Foi neste dia em que partimos do Rio de Janeiro a bordo da Verônica, o pesqueiro do Capitão Viçosa. Era uma manhã de verão bastante agradável e eu tinha o rosto livre de rugas e os cabelos ainda escuros. No pesqueiro estávamos eu, Capitão Viçosa, que era filho de portugueses, Benedito, Francisco, e Martins, que não passava dos dezoito anos de idade, e, se me lembro bem, ele havia dito que aquela seria sua primeira viagem à alto mar. O pobre coitado estava animado à beça, subindo no convés exibindo seus dentes tortos num sorriso bem-disposto. Benedito e eu fazíamos parte da tripulação há pouco mais de um ano, enquanto que Francisco já trabalhava com Viçosa há pelo menos cinco anos, mais o menos o tempo de existência da Verônica.

– Feche essa boca ou uma gaivota vai cagar dentro dela, rapaz. – Disse Francisco ao ver o sorriso de Martins.

Francisco sempre foi meio rabugento, já estava perto dos quarenta anos e seu bigode era tão grande quanto grisalho. Ele havia pedido a Martins para ajudá-lo a empilhar as caixas onde colocaríamos os atuns durante a pescaria dos dias seguintes. Enquanto isso eu e Benedito embarcávamos com cobertores e coisas da cozinha. O Capitão Viçosa era muito rígido com o cuidado que deveríamos ter com o estoque de comida, pois em longas jornadas de pesca a comida é a carga mais importante. Alguns mendigos perambulavam por perto, marujos de outras embarcações passavam para lá e para cá o tempo todo, e não muito longe dali eu via o Mosteiro de São Bento, uma construção muito bonita da qual me arrependo de nunca ter visto bem de perto.

Verônica flutuava nas águas da baía de Guanabara e era considerada uma embarcação simples apesar de seu tamanho avantajado em comparação aos outros pesqueiros. Tinha o casco pintado de branco e os detalhes em verde, que naquele tempo já estavam encardidos e a cor verde parecia muito mais com manchas de lodo contornando as bordas do navio. Seu nome estava pintado em belíssimas letras garrafais da cor vermelha, que ainda mantinha a mesma intensidade desde quando foi pincelado na lateral do casco pelo irmão do Capitão, sujeito do qual ele sempre evitou falar.

Quando os preparativos para zarparmos já haviam sido finalizados, eu me sentei na proa e desamarrei a corda grossa que estava presa num tronco de sustentação do cais. O motor rugiu logo em seguida com o Capitão no timão.

– Parece que essa vai ser uma pescaria das boas, não é? – Disse Benedito, com um cigarro de palha pendurado em seus lábios rachados.

– Trinta dias em alto mar com vocês… Não sei se aguento – Respondi com um sorriso e acendendo meu próprio cigarro.

– Espero que voltemos com aquelas caixas cheias, quero que o esforço valha a pena. Estão dizendo por aí que os malditos argentinos pegam os nossos peixes, dentro do nosso território! – Ele disse, cuspindo na água logo em seguida.

Já estávamos há aproximadamente um quilômetro de distância do porto quando essa conversa surgiu, e Francisco apareceu saindo do interior do navio com uma espingarda antiga em mãos.

– Juro que se eu vir algum argentino ele vai ganhar um furo no peito. Há-há-há! – Ele riu exibindo seus dentes podres.

Benedito lançou um olhar de preocupação para mim. Ele era um homem muito religioso, mas sua preocupação não era exatamente em matar argentinos. Francisco, homem de temperamento explosivo, com uma espingarda a bordo certamente não era uma boa combinação. Ainda mais com quase quinze litros de cachaça estocada. O Capitão normalmente não aprovaria tanto as bebidas quanto a arma em um dia de trabalho comum, mas ele estava irritado de verdade com os argentinos roubando nosso atum, e passar trinta dias vendo nada além de águas salgadas em todas as direções poderia deixar um homem descontrolado sem os prazeres proporcionados pelo álcool.

Enquanto saíamos da baía de Guanabara, vendo o litoral distanciar-se cada vez mais, eu e os outros pudemos relaxar. Só estaríamos aptos a pescar alguma coisa daqui algumas horas e não havia muito que fazer até então. Sentei sobre uma caixa, o cigarro já no fim, e observei as águas que rodeavam a Verônica. O mar sempre me fascinou, e sinto um calafrio só de pensar o quão fundo ele pode chegar. Os homens conseguiram dominar a terra, e agora os céus, mas o mar é furioso e impossível de ser vencido por nós, seres humanos. Não podemos respirar debaixo da água, não enxergamos direito, não nos movimentamos muito bem, ele simplesmente não foi feito para nós.

Martins estava enrolando algumas cordas ao lado das grandes redes de pesca, que mais tarde seriam abertas e presas em longas hastes posicionadas diagonalmente em cada um dos lados da Verônica. Eu gostava da aparência que a embarcação tinha quando passava as redes pela água e emergia carregada de peixes, que futuramente seriam vendidos para fazendeiros ou para feirantes. Um bom negócio, muito estável. Naquela época eu sonhava com o dia em que juntasse dinheiro o suficiente par ter meu próprio navio e começar meus próprios negócios, mas é complicado, embarcações como Verônica são difíceis de encontrar. E quando encontra, custa um preço absurdamente alto.

– Eu espero que consiga fazer isso algum dia, Roberto – Viçosa dizia para mim com seu sotaque de português europeu – Mas a concorrência é grande e está cada dia mais difícil conseguir um barco bom por um preço justo.

Ao anoitecer, nos juntamos na sala de jantar como de costume, que não era nada além de um cômodo apertado com uma mesa redonda e vários banquinhos de madeira. Benedito, que geralmente cozinhava, tinha feito uma sopa de carne de galinha, havíamos trago pouca carne, e devíamos consumi-la o mais rápido possível já que a geladeira do barco não funcionava muito bem. Viçosa comprou o aparelho de um veleiro italiano que havia passado pelo porto do Rio de Janeiro no ano passado, e só funcionou depois que passou pelas mãos de Guimarães, um engenheiro conhecido do Capitão.

– Isso é comida para manter o corpo de pé. Não é comida pra peidar cheiroso, garoto – Benedito disse ao ver a cara feia de Martins diante da sopa, que, apesar de estar com um aroma gostoso, tinha aparência de lavagem.

Sempre gostei da comida que minha amada noiva fazia. Eu costumava visita-la e levar algum presente, e para mim ela preparava um verdadeiro banquete. Sua família não era endinheirada, mas seu pai era padeiro e seu estabelecimento tinha adquirido certa fama nos subúrbios do Rio. Carina era seu nome, e tinha um rosto macio e olhar tímido. Cabelos negros e um tanto quanto esguia. Sinto falta dela nos dias de hoje.

Logo depois do jantar estávamos livres para ir dormir, já que só estaríamos na zona de fartura no meio-dia de amanhã. O dormitório consistia em dois beliches velhos, e os aposentos Capitão ficavam logo ao lado, podíamos ouvi-lo roncar às vezes. Ele ficava num cômodo bem menor, mas ao menos a cama era mais confortável. Martins e Benedito foram jogar cartas na cozinha. Francisco dormia num dos beliches. E eu estava ao lado de Viçosa, que guiava Verônica através do timão.

– Não tá achando as águas um pouco agitadas? E o vento um pouco forte demais? – Perguntei enquanto esfregava as mãos descobertas.

– Um pouco. Rezo para que não tenhamos uma tempestade, ou não vamos conseguir pegar nada amanhã. – Respondeu esfregando os olhos. – Mas não seja tão pessimista, Roberto. Está me deixando tenso.

Na dianteira, dois holofotes estavam ligados iluminando com precisão até trinta metros adiante e de lá pra frente nada mais. Não havia recifes ou bancos de areia naquela região, então nossa única preocupação eram outras embarcações.

– Vou dormir, vejo você amanhã, Capitão – Me despedi e ele me desejou uma boa noite de descanso.

Me dirigi até o dormitório, passei pela cozinha e desejei boa noite para os dois que jogavam cartas, e deitei no meu beliche, logo acima de Francisco. Pensei que o Capitão revezaria o timão com Benedito, já que ele não falara nada comigo, mas vi Benedito e Martins chegando ao dormitório uns trinta minutos depois de mim, sinal de que Viçosa desceria a âncora, e que amanhã teríamos um trabalho danado para puxá-la de volta, mas pouco importava, eu só queria ter uma noite de sono tranquila.

*

*             *

Meus olhos arregalaram com o estrondo ensurdecedor de um trovão. Os anos a bordo de embarcações me deixou tão acostumado com o movimento das águas que não havia percebido que Verônica estava balançando mais do que deveria, sinal de que as ondas nos atingindo não eram nem um pouco pequenas. Recebi uma descarga de adrenalina muito forte, mas meu corpo ainda estava se aprumando, eu havia acabado de me levantar e com todo aquele balanço acabei perdendo o equilíbrio e caindo. Lembro-me desta cena com perfeição. Eu estava meio que curvando o corpo para frente, e a Verônica se inclinando para trás, e de repente toda a estrutura da cabine se moveu para frente também, e eu fui arremessado de cabeça no criado-mudo que havia sido pregado ao chão por mim mesmo, semanas atrás, pois estava cansado de ter que arrastá-lo de volta para seu lugar. Senti uma pressão na testa, uma tontura que me impedia de levantar e perdi a consciência. Talvez tivesse sido melhor assim.

Abri os olhos devagar e a minha testa latejava, uma dor constante que parecia ter perfurado meu crânio. Tive a sensação estranha de que havia perdido alguma coisa. Um pano estava enrolado ao redor da cabeça e Martins me encarava, com os olhos vidrados. Senti um forte cheiro de fumaça. Flashes da tempestade e da minha queda passaram por meus olhos, praguejei e me levantei desajeitado. Não havia mais tormenta alguma, e pensei que Martins estava em choque.

– Ei, garoto! – O cutuquei no ombro.

Ele sacudiu a cabeça como se tivesse acordado de um transe, e olhou para mim. Pigarreou antes de falar alguma coisa.

– Vai lá fora. Você não vai acreditar no que pescamos durante a tempestade. – Falou misteriosamente.

Martins não havia dito aquilo com animação, e também não entendi muito bem o que ele quis dizer naquele momento, apenas andei até o convés o mais rápido que pude movido pela curiosidade e irritado pela dor de cabeça.

No convés notei que ainda era noite, e vi Benedito ajoelhado e com um crucifixo de madeira em mãos. Balançava o corpo para frente e para trás e murmurava algumas palavras. Quando apareci ele olhou para mim, pálido e molhado, talvez fosse suor, mas o mar ainda estava ligeiramente agitado e o convés empoçado. Não falou nada, apenas continuou suas preces em voz baixa.

A grande lona de couro que usávamos para cobrir a pesca do sol estava estirada sobre algo volumoso e cumprido, com talvez dois metros de uma ponta a outra.

– Um tubarão? – Perguntei apontando para o corpo estranho que parecia pulsar.

Benedito choramingou e se encolheu ainda mais. Francisco, segurando a espingarda com as duas mãos, se aproximou de mim em passadas largas.

– Afaste-se! – Gritou quando eu ameacei tocar a lona. – Não ouse fazer isso, Roberto.

– Cadê o Viçosa? – Perguntei, achando aquilo tudo muito estranho.

Francisco ficou pensativo de repente, olhava para os lados como se tentasse se lembrar de alguma coisa.

– O Capitão foi quem viu primeiro… A coisa… Ele tentou cobrir com a lona, mas antes que conseguisse… – Fez uma breve pausa com os olhos fechados e voz trêmula – Benedito teve que cobrir… Eu só vi de relance. Martins viu tudo de longe. Vamos todos morrer! – Falou demonstrando claramente estar num estado de delírio.

Não tentei levantar a lona de novo, e confesso que fiquei com medo de Francisco. Ele não estava normal. Seus olhos vibravam e as mãos tremiam sem controle. Eu não fazia ideia do que se escondia ali, mas pelo que pude entender, tinha matado Viçosa.

– É o demônio! Prole de Satã! – Berrou Benedito subitamente – Está na minha cabeça! Vai estar na de vocês também! – Ele, que até então estava ajoelhado, levantou e correu para o interior da embarcação.

Fiquei atordoado por alguns segundos enquanto olhava para a porta onde Benedito se atirou, e pude notar uma coluna de fumaça enorme junto de sinais de chamas vindos da proa de Verônica.

Entrei apressado e passei por cima de muitas coisas caídas. Convenci a mim mesmo durante o percurso que seja lá o que estivesse debaixo da lona de couro derrubou Viçosa no mar durante a tempestade, e fui seguindo meu olfato, indo na direção do fogo.

O incêndio era na cabine de navegação. Não faço ideia de como começou, mas já havia se espalhado por todo aquele cubículo e destruído os vidros das janelas graças ao calor. As tábuas do chão estavam pretas assim como o teto, e havia muita fumaça. Eu nunca havia visto um barco ser incendiado durante uma tempestade, mas deduzi que fora obra de um raio. E o fogo precisava ser parado, ou se espalharia por toda a embarcação.

Procurei por Martins, ele era o menos experiente dali, mas certamente não estava histérico como os outros dois.

– Garoto! Vá até a cozinha e pegue baldes de água! Precisamos apagar o fogo! – Gritei enquanto o agarrava pelos ombros.

– Fogo? – Ele perguntou calmamente.

– Vai destruir o barco inteiro se não dermos um jeito agora mesmo.

Corri para a cozinha por conta própria e ele veio atrás. Ajudou-me a encher dois baldes, os quais eu carreguei até a cabine de navegação e despejei no chão, bem onde o fogo se formava com mais intensidade. Martins me acompanhou com mais dois baldes, somando ao todo quatro enxurradas que acalmaram as chamas. Para nossa sorte a tempestade já havia espalhado água em todos os cantos da Verônica, deixando a madeira umedecida, se fosse num dia escaldante eu já teria sido tostado antes de acordar.

Bufei de alívio. O fogo em algumas ocasiões pode gerar um desastre muito maior do que um buraco no casco do navio.

– Pelo amor de Deus, Martins! Me conte o que houve com Viçosa! – Falei enquanto largava o último balde vazio no chão.

Agora que a emergência de maior importância havia sido resolvida, eu estava mais desesperado do que nunca. Precisava de alguém para me ajudar a entender tudo o que estava acontecendo, já que os dois marinheiros mais antigos e experientes que trabalhavam comigo estavam descontrolados de uma maneira que eu nunca vira antes.

– A tempestade o trouxe… – Martins falou com o olhar vazio.

– O quê?

– O Peixe. – Olhou para mim e esfregou as próprias mãos tomadas pela aflição – O Peixe! Ele está no barco!

– Qual peixe? Um tubarão? – Perguntei mais uma vez, já que da outra não havia tido uma resposta.

– Eu não o vi direito, assisti tudo com a janela fechada, e a tempestade distorceu minha visão. – Começou a falar e virei dois baldes de ponta-cabeça para que pudéssemos sentar – Quando acordei os três já tinham levantado, e não consegui distinguir quem era quem. Mas havia alguma coisa estranha no convés, algo caído que se mexia e fazia um som estranho… Um som diabólico. – Ele começou a chorar, e fiquei genuinamente assustado, mas pedi para que prosseguisse – Os três gritaram e taparam os ouvidos. O barulho não parava e Viçosa foi o mais corajoso, pegando a lona e jogando-a sobre Ele. Porém, o Peixe o agarrou e a lona caiu sobre os dois. Benedito tentou ajudar e Francisco se agachou num canto. Benedito olhou por tempo demais… Benedito olhou demais. – E repetiu a última frase por mais umas quatro vezes.

Minha reação imediata foi ir atrás de Benedito, já que ele havia visto a Coisa de perto. Deixei Martins na sala judiada pelo fogo e desci rapidamente para o dormitório, onde supus que ele estaria após deixar o convés berrando insanidades.

– Benedito? – Indaguei assim que entrei no cômodo.

Eu estava ouvindo sussurros, uma voz baixa que lamentava através de palavras incompreensíveis. Palavras estranhas. Fui caminhando lentamente entre os beliches, a madeira do chão rangia e o barulho do mar já era inaudível aos meus ouvidos por conta do costume de ouvi-lo. Quando o encontrei, pude ver que estava de joelhos voltado para a parede, curvado sobre o piso. A princípio pensei que estivesse rezando em latim, ou alguma coisa parecida, mas não.

– Benedito? – Chamei sem coragem de cutucá-lo.

Ele ergueu o corpo, mas permaneceu ajoelhado. Agora falava mais alto, quase gritando. Só então percebi que estava arranhando o chão com as próprias unhas, agora ensanguentadas. Eram símbolos esquisitos em formas geométricas que, possivelmente, compunham palavras.

– Ph’oglui morr’nafh Ibo-dar faugn tsathogghua’c ehye k’yrnak lw’nor. – Ele dizia e repetia incessantemente numa voz inumana, semelhante ao chiado de uma cobra.

Reuni coragem para me convencer de que ele estava apenas delirando e o puxei pelo ombro, fazendo com que se virasse abruptamente. As unhas de suas mãos estavam tortas, quebradas e partidas, pingando sangue vermelho. Os olhos, quando tentei chamar sua atenção, estavam brancos, voltados para o lado contrário de sua cabeça.

– Benedito! Acorde! – Eu gritei sem saber o que fazer. E ele não respondeu.

Ainda daquela maneira, Benedito segurou meus braços com força e gritou com uma voz estranha:

– Mão ou olho, dentre os mortais e imortais, jamais deve desafiar a totalidade daquele que descansa nas profundidades.

Dito estas palavras ele caiu desacordado. Agora com os olhos fechados, filetes de sangue saíram de suas narinas. Segundos depois uma tremedeira se espalhou pelos braços e pernas, e eu tinha certeza de que ele morreria. Mas na verdade não era morte, transformação seria a palavra ideal. A pele dele assumiu uma coloração cinzenta num piscar de olhos e ficou muito ressecada. Ele gritou agonizante expondo o interior arroxeado de sua boca, agora dotada de dentes pontiagudos. Aquilo parecia piorar a cada momento, até que um estouro quase me deixou surdo de um dos ouvidos. Senti o cheiro de pólvora e assim que abri os olhos após o susto notei um buraco na testa de Benedito, com sangue respingado ao redor e uma massa vermelha no interior da ferida.

– Deus do céu! – Gritei dando alguns passos desajeitados para trás. – O que é isso?

Dei meia volta e vi Francisco segurando uma espingarda. Pupilas dilatadas e respiração ofegante. Ele não delirava como Benedito, mas parecia extremamente perturbado.

– Ele precisou morrer… – Falou em voz baixa, soltando a arma no chão. – Assim como eu ainda preciso. Não quero acabar como ele.

Olhei novamente para o corpo imóvel de Benedito. A pele ainda permanecia com aquela estranha aparência escamosa, assim como os dentes afiados. Martins irrompeu pela porta do dormitório com um par de olhos esbugalhados. O rapaz encarou a cena medonha por um segundo e vomitou, curvando-se sobre si mesmo.

Francisco correu para o convés e nenhum de nós o seguiu. Nunca mais o vi. O tom assombroso de suas últimas palavras com aquele olhar irreconhecível no rosto ficaria cravados em minha memória pelo resto da vida.

– Já chega! – Gritei. Estava tomado por raiva, confusão, e histeria.

– O que vai fazer? Estamos todos condenados. – Martins falou enquanto limpava os lábios.

– Vou ver o que está por baixo daquela maldita lona e arrancar as vísceras da criatura com uma faca.

Saí do dormitório com pressa e peguei uma faca de cortar carnes quando passei pela cozinha. Pude ouvir os protestos de Martins, mas não entendi uma única palavra. Eu nunca estive tão confuso em toda minha vida.

Minha mão apertava o cabo da faca com tanta força que chegava a doer os ossos dos dedos. Confesso que quando parei diante da lona, fixando o olhar naquele volume pulsante, hesitei com medo e por pouco não desisti. Mas fiz o que disse que faria, descobri a tal monstruosidade.

*

*             *

Eu puxei o tecido com força e revelei a entidade dantesca que se escondia por baixo. Logo me dei conta de que teria sido melhor não tê-lo feito.

Por muitos anos de minha vida eu fui incapaz de descrever para mim mesmo o que vi naquele instante. Eu começava a suar frio, a respiração ofegava, e eu entrava em pânico só de relembrar a situação, chegando perto do desmaio muitas das vezes. Mas agora que estou velho e a história parece ter acontecido em outra vida, percebo que relembrar aquela visão não é uma coisa tão dolorosa quanto costumava ser no passado.

No momento em que fixei os olhos no Peixe, recebi uma onda de sensações estranhas, como um turbilhão de emoções num único segundo infinito. Meu estômago revirou e um gosto amargo veio à boca. Pisquei os olhos repetidamente, pois o ar que o circundava parecia arder em podridão. Senti uma súbita vontade de gritar, chorar, e até mesmo esmurrar alguém, mas essa sobrecarga de sentimentos apenas me fez paralisar de tal maneira que absolutamente nada além de minha mente trabalhava.

Somente quando venci estas impertinentes barreiras invisíveis pude entender o que estava diante dos meus olhos. O que aparentemente era sua pele possuía uma cor vende e era muito fina, quase transparente, de tal modo que era possível enxergar os rostos e pedaços humanos que se remexiam em sua grande barriga inchada. Os braços atrofiados, munidos de barbatanas nas articulações, moviam-se meio que for reflexos involuntários. No geral, a criatura parecia estar em sofrimento. No que deveria ser sua cabeça, deformada e pulsante, havia tentáculos que se balançavam cegamente, evitando tocarem nas inúmeras bocarras oleosas e olhos espalhados aleatoriamente por toda aquela parte do corpo.

Eu compreendo que é difícil entender. E acredito com sinceridade que nem deveriam, pois eu poderia preencher cem páginas com palavras a fim de ilustrar o Peixe, mas a única conclusão que teriam é que não fomos feitos para conceber aquilo que não pertence ao nosso mundo. E, além disso, não foi a horrenda criatura que tanto me assombrou durante toda minha vida, mas sim os rostos de Viçosa e Francisco que jaziam numa tortura sempiterna dentro das tripas da Coisa.

Com os músculos fraquejando, meus dedos se abriram e soltaram a faca que eu segurava com tanta bravura até o momento. Meus ouvidos, cansados de escutarem tanto sofrimento, agora escutavam um música serena, e ouso dizer que até mesmo relaxante, lembrando o toque sutil de uma harpa e o deslize gracioso do arco sobre as cordas de um violino. Por mais estranho que pareça, aquela música, de fato, vinha do Peixe, e percebi que sua beleza não estava na aparência, apenas na voz.

Quando aquelas palavras que pareciam estarem munidas de cores vibrantes chegaram aos meus ouvidos eu pude entendê-las com incontestável clareza.

– Leve-me ao mar! E poupe sua mente da loucura que minha imagem pode lhe causar. Leve-me ao mar, de volta para o mundo imperscrutável ao qual pertenço.

Fechei os olhos por um segundo, ou talvez mais, eu não tinha mais controle do meu próprio corpo. Minha mente se transcendeu para cantos obscuros do cérebro, onde essência que me mantinha vivo era insignificante. Vi o universo diante de meus olhos que observavam a tudo com incredulidade, meu corpo vagava numa escuridão profunda além das estrelas, contemplei a inigualável dança dos astros celestiais que se moviam como ondas brilhantes nos salões vazios do espaço, belezas indescritíveis para aqueles que algum dia possa ler este relato. E no segundo seguinte eu estava com frio, à beira do congelamento, num mar tão fundo e escuro quanto o espaço acima dos céus. Testemunhei a simetria perfeita de uma cidade arruinada, afogada nas águas dos oceanos e tomada por algas e crustáceos asquerosos. Todo o espírito majestoso daquele lugar estava perdido em algum lugar do passado, como lembranças que aos poucos vão se tornando tristes em sua mente e, quando se dá conta, tornam-se tristes e sem cor.

– Já pode soltar minha mão. – A música soou mais uma vez – E agora me deixe no mar.

Senti um calafrio e uma dor de cabeça que me fez ficar tonto. Eu segurava os tentáculos do Peixe com as duas mãos, e só então percebi que não conseguia respirar. Meus olhos arderam e notei que estava debaixo d’água.

Soltei os tentáculos viscosos da criatura e nadei desesperadamente para cima, já quase não aguentando segurar o fôlego. No último instante eu parei faltando centímetros para alcançar a superfície e olhei para baixo. O Peixe agora era um mísero ponto verde tão longe quanto o sol sobre minha cabeça, até que sumiu na escuridão profunda.

Quando imergi com a boca aberta e respirando ofegante, sacudi a cabeça para tirar o excesso de água dos cabelos e olhei ao meu redor, conseguindo identificar Verônica a apenas alguns metros dali. Nadei até lá e vi Martins assustado me olhando do convés.

– Você perdeu a cabeça, Roberto? Como pôde jogá-lo na água daquela maneira? – Gritou enquanto jogava uma corda para que eu subisse à bordo.

–Acho que podemos voltar para casa, Martins. – Falei enquanto pisava no convés outra vez.

Dentro da embarcação, percebi que Verônica estava afundando. Não naufragando como vítima de acidente, mas sim puxada para baixo de uma maneira sobrenatural.

Com a ajuda de Martins, lancei no mar o único bote que tínhamos e abandonei Verônica somente com as roupas encharcadas que vestia. Ele trouxe os remos e contemplamos a embarcação submergir lentamente.

O que aconteceu daí pra frente não é tão importante. Obviamente voltamos para a costa da forma mais precária possível, desidratados e famintos.

No início fiquei de boca fechada, tudo o que minha noiva e amigos sabiam é que havíamos perdido três tripulantes durante a tempestade e que um incêndio havia começado na embarcação por conta de um raio, obrigando eu e Martins a fugirmos no bote. E assim tudo poderia voltar ao normal.

Admito que foi difícil para mim, nunca tive coragem suficiente para navegar novamente, sofri com insônia durante alguns meses e, quando dormia, era assombrado por pesadelos terríveis, revivendo aqueles últimos momentos assombrosos com Benedito. Durante algumas semanas eu me reunia regularmente com Martins a fim de conversarmos sobre como estávamos lidando com tudo. Ele continuou no ramo da pescaria, mas alguns anos depois, quando paramos de nos reunir, eu soube através de sua mãe que ele cometera suicídio, e que nos últimos dias em que o havia visto ele se queixava de vozes e pesadelos em sua cabeça.

Fiquei ligeiramente perturbado com a notícia, afinal meu casamento estava próximo e eu não podia perder o controle. Apesar dos pesadelos, eu já havia superado as crises de ansiedade e a insônia, mas temia que a loucura viesse ao meu encontro sorrateiramente. Rezei muito para que isso não acontecesse, e de fato não aconteceu.

Durante toda a minha vida o que houve após aquela tempestade a bordo da Verônica foi meu segredo mais precioso. Fui para o interior do estado, abandonando o antigo sonho de ter meu próprio barco pesqueiro para me dedicar à agricultura. Por tanto tempo não vi o mar que agora que estou em meus últimos dias de vida, já esqueci como é boa aquela vista. Também esqueci a Verônica e seus falecidos tripulantes. Por fim, tive a minha tão esperada vida normal de volta. Criei filhos, construí uma boa casa, e apesar de não ter feito muito dinheiro, nunca passei fome.

É curioso como somente agora, no fim de minha existência, esta história está mais ativa em minha memória do que jamais esteve. Costumo sonhar e repassar tudo aquilo quando estou dormindo, algo que me levou a escrever o maior segredo que possuía nesta caderneta, aliviando minha consciência de alguma maneira.

É com a mão cansada de tanto escrever que me despeço. Não só daquele que foi forte o suficiente para ler meu relato até aqui, mas também de todo o mundo, pois tenho a estranha sensação em meu peito de que irei rever o Peixe em breve, basta fechar os olhos.

O Golem


Silêncio. Seus ouvidos pareciam terem se fechado para qualquer barulho, mas ainda assim os olhos teimavam em abrir uma fresta para investigar o que estava acontecendo ao redor. De vez enquanto Ele os abria e fechava, ardiam como se estivessem cheios de areia. Uma dor cortou-lhe o peito e se espalhou como água entre as costelas expostas, com uma rápida olhada percebeu que estava sendo submetido a uma cirurgia, já que alguém com vestes de médico e luvas ensanguentadas mexia e despejava resíduos em sua vísceras.

Poupe-me da dor… – Implorou num último esforço e deitou a cabeça, desacordado.

Quando finalmente voltou à consciência, viu-se amarrado numa cama com lençóis manchados de seu próprio sangue. Seus olhos não ardiam mais, mas se sentia estranho, não parecia mais o mesmo, não sentia mais dor nas saturações e tudo parecia ter ficado cinza. Ele se levantou arrebentando as tiras de couro presas nos punhos e olhou para os lados, vendo estranhas ferramentas cirúrgicas que mais pareciam equipamentos de serralheria, todas com sinais de uso. Do lado de fora da janela caía uma verdadeira tempestade, relâmpagos iluminavam o cômodo momentaneamente, permitindo que e Ele localizasse uma porta sem maçaneta. Andou sobre os pisos imundos e tentou chamar por alguém, mas ao abrir a boca percebeu que não tinha mais voz, e a única coisa que suas cordas vocais emitiam era um urro agonizante. Foi até a janela e buscou alguma maneira de sair por ela, mas era muito alta, pois estava no topo de um farol à beira de um penhasco. Ele olhou para o horizonte e viu um céu cinzento tomado por nuvens negras despejando sua fúria num mar agitado, que por sua vez golpeava os rochedos do litoral. Mais uma vez Ele urrou, e o som de sua voz amaldiçoada perdeu-se em meio a raios e trovões.

Desesperado, golpeou a porta velha que o mantinha confinado e, para sua surpresa, ela se desfez num monte de lascas e farelo de cupim. No cômodo adiante ele escutou música vinda de uma vitrola, aparelho de luxo para época, e ao lado, sentado numa cadeira e com um charuto na boca estava o Doutor, que fixou seus olhos lacrimejantes no brutamonte que saíra da sala de cirurgia. Levantou, lançou o charuto para longe e se ajoelhou perante Ele.

Ó Deus! Ó Grande Criador! Até onde vão os doentios desejos do homem? Perdoe-me, perdoe-me! Agora percebo que nada pode ser criado senão pelas mãos divinas do Senhor!

O Doutor caiu choramingando, e Ele, o golem, permaneceu imóvel por algum tempo, até que, aos poucos, sua mente fora invadida por uma súbita vontade, uma vontade que percorria seus braços, suas pernas, e o seu peito sem coração. A vontade de matar. Suas mãos agarraram o sujeito violentamente e sem muito esforço o dividiu em dois, fazendo um estalo quando lhe partiu a coluna vertebral, inundando o chão com órgãos e uma enxurrada de sangue. Ele seguiu para o fim da sala e desceu as escadas de madeira até chegar ao térreo, onde esmagou o cadeado da porta de entrada e seguiu para fora do farol.

Dias se passaram e a mente corrompida Dele aos poucos fora sendo dominada por aquela mesma vontade que o controlou na noite de seu despertar. E no fim, ele nem mesmo sabia que um dia havia sido humano.